18 de setembro de 2016

Apotemnofilia


Há uma falha na conectividade cerebral, existe uma parte do cérebro que representa o mapa do seu corpo. E quando esta parte nasce danificada, o individuo sente-se que esse mesmo mapa corporal está com partes demais, levando-o a uma obsessão extrema, criando fetiches insanos de sentir-se a necessidade que alguma parte do seu corpo deve ser amputada.
Agora me permitem contar a história triste da minha amiga Mel. Mel desde criança era uma pessoa intensa. Fazia todas as coisas com uma imensa paixão. Mas ao mesmo tempo, ele sentia que essa paixão não fazia parte dela. Era uma intensidade que a fazia se perder em emoções desconexas e sem nexo, e sim Mel sofria, chorava.
Com o tempo, na idade mais adulta, Mel começou a ter as perversões mais perversas possíveis, como demanda essa falha cerebral. Começou a ter fetiches por pessoas amputadas, com partes do corpo faltando. Ao mesmo tempo que ela sentia desejo por essa fantasia, ao mesmo tempo ela se sentia mal, porque algo no corpo dela não deveria estar dentro dela, algo que causava exatamente esses fetiches estranhos.
Mel pediu minha ajuda, me levou ao seu quarto secreto, um porão onde ninguém entra em sua casa. E me mostrou seus pecados. Havia um mural de fotografias, com pessoas mutiladas, mas pessoas sentindo tesão e apreciando a automutilação. Ela me disse a seguinte confissão que me deixou com brilhos nos olhos naquele dia: Eu confio em você como deus confia em seus anjos.
Ela tentou mostrar para mim, como aquela enfermidade que acompanhava ela desde criança, a fazia mal, a fazia se sentir culpada. Mas ao mesmo tempo, percebi que seus lábios se mordiam de excitação, ela tentava disfarçar, mas a sua língua lambia seus lábios, molhados e tenros. Era a fusão do sentimento de culpa com a necessidade do prazer, e ela me beijou.
E o beijo era intenso, como ela havia me dito, era algo que deixava você eufórico, era como uma droga estimulante, logo eu me senti dominado por aquele beijo. Um beijo que transmitia a sua perversão de pessoa para pessoa, e percebi então, que eu fui chamado ali, porque eu era o único capaz de se entregar a sua intensidade sem medo algum. Eu me senti como um receptáculo, onde ela estava dividindo o vírus e a doença dela comigo. E eu me enchi da sua intensidade, me entreguei, me apaixonei.
Ao passar dos meses, nós estávamos ligados a um tipo de frenesi coletiva, a dois. A euforia dominava nossas mentes, levando nossos corpos realizar as fantasias mais bizarras possíveis. Porém a culpa que ela carregava, eu também comecei a carregar. Eu não aguentava mais receber casais que queriam ser mutilados por nós. Aquela dor, aqueles gritos, aquele tesão, aquele sangue e vísceras, aquele gozo coletivo.
Mel me levou ao seu mundo, eu me senti traído por sua ousadia, por sua necessidade. Muitas pessoas tem essa enfermidade cerebral, apesar de ser rara. Alguns querem que apenas um dedo seja arrancado, outros querem a perna, normalmente os fetichistas por pés são os mais comuns, perdemos a conta de quantos pés nós amputamos. E eu queria sair desse mundo doentio. Por mais prazer que eu e Mel sentia.
Então eu descobri o órgão dela que deveria ser arrancado. E o arranquei, sem dó, e nem piedade. Era o seu coração. Aquela intensidade, aquela necessidade de amar e ser amada de volta, era doentia, e eu fui o a sua vítima involuntária. Quando arranquei, me senti curado, ela ao mesmo tempo sentiu um desespero imenso, ao se deparar com a minha traição, ela confiava em mim como deus confiava em seus anjos, mas esqueceu de que haviam muitos anjos caídos, e ali então, eu havia me tornado um para ela. Mas ao mesmo tempo o olhar dela transmitia prazer, um gozo, um orgasmo, seus lábios se mordiam novamente, sua língua passava-se sobre os lábios molhados, mas desta vez, eu a beijei, e juntos caímos em sono profundo, um sono tão profundo que Morfeu estava tendo pesadelos enquanto dormíamos.
Na manhã seguinte, estávamos no mesmo porão, acordamos juntos, o lugar estava limpo, não havia mais aquelas fotografias, e nem um vestígio de sangue, havia um grande por do sol lá fora, brilhando nossas janelas. Toda aquela intensidade visceral havia passado. Juntos tomamos café da manhã, cujo no cardápio estavam nossos corações. Cujo corações que entregamos um ao outro. O amor e a paixão psicologicamente estavam saudáveis. Íamos ficar juntos, e ali ficamos e nunca mais saímos. Do inferno nos libertamos, no paraíso nos encontramos.
A ironia da história, é que essa Parafilia que tínhamos, o principal sintoma dela, era ter um órgão arrancado, porém com o mesmo, nos sentíamos escravos de uma perversão infernal, mas era algo que nos deixávamos incompletos, arrancamos, e agora que arrancamos, a ausência nos tornou completos.
Hoje eu a amo e ela me ama na mesma medida simultaneamente. Hoje nos amamos, e nos completamos, hoje confiamos um ao outro como o Diabo confia em seus anjos caídos.
- Bruno Bernardes.