16 de julho de 2018

Mercúrio nos termos de Saturno

"Eu tenho uma intimidade com a morte desde que me conheço por gente. Mas eu não sou daqueles que falam com espíritos e escutam vozes. Meu contato é diretamente com o corpo moribundo. Eu me formei para trabalhar na polícia forense de São Paulo. E eu passo os dias fotografando cenas de crime, e aqui na grande São Paulo, nesta cidade repleta de violência e caos, o que mais acontece é a morte, ela sempre visita os cantos mais obscuros e os mais improváveis da cidade, e eu? Meu papel é estar lá e colocar em evidência o seu trabalho pútrido e fétido. Transformo em arte a pele se desgrudando dos ossos, o cheiro se torna um perfume agradável para todos os tipos de vermes, e eu? Só estou ali pra deixar em evidência, fotografar, e pelo tecido e pela situação do corpo, analiso e calculo friamente o tempo que aquele corpo faleceu, calculo possíveis provas que podem solucionar algo muito mais sombrio que caminha ainda entre nós. Algo muito mais sombrio que a própria morte, um ser humano sádico que flerta com a insanidade, ser humano tolo, mal ele sabe que ele apenas é um peão para o jogo mortal da vida e da morte. E eu? Só estou ali para expressar minhas idéias que podem solucionar o motivo da morte. Para mim isso é banal, é rotina. Muitos me acham mórbido, mas alguém precisa coletar informações da morte para que de alguma forma, algum dia possamos desmascará-la. Eu já olhei para os olhos da morte, ela se disfarça bem, às vezes ela tenta me beijar, sorte que conheço já o cheiro de sua saliva e consigo me esquivar. Mas eu sou realista, eu sei que um dia, ela vai conseguir tocar meus lábios, e eu dormirei ao lado dela na eternidade. A realidade é nua e as pessoas tentam vestir ela com suas ilusões, eu prefiro deixar a realidade nua mesmo, por mais feia e suja que ela seja. Às vezes o pessimismo nos livra das fantasias mal elaboradas, pois além de nua, a realidade também é crua, muito parecida com os corpos moribundos que preciso fotografar, muitos já estão em carne viva, nus e crus, largados no esquecimento do tempo que mata todos. O tempo destrói tudo, nascemos, morremos e apodrecemos. E nada mais."